domingo, 23 de dezembro de 2012

Só eu consigo, mas não sozinho...


"Começar de novo - Ivan Lins
Começar de novo e contar comigo

Vai valer a pena ter amanhecido

Ter me rebelado, ter me debatido

Ter me machucado, ter sobrevivido

Ter virado a mesa, ter me conhecido

Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e só contar comigo

Vai valer a pena ter amanhecido

Sem as tuas garras sempre tão seguras

Sem o teu fantasma, sem tua moldura

Sem tuas escoras, sem o teu domínio

Sem tuas esporas, sem o teu fascínio

Começar de novo e só contar comigo

Vai valer a pena já ter te esquecido

Começar de novo..."

                                                                  Silvio Margarido-23/12/2012                                                                                          
A viagem de carro da rodoviária até a chácara foi feita em silêncio. O medo e a dor tomavam de conta de cada neurônio doente e cada extensão nervosa descarregava em suor as mágoas de uma existência desmedida que tinha, até aquela hora, decidido levar. Entrei por aquele portão de madeira calado e fui recebido pela costumeira revista aos novos residentes. Minha cabeça, além de carregar excessos químicos, estava vazia de qualquer pensamento de esperança. Começou naquele fim de tarde do dia 24 de dezembro de 2009 a minha jornada contra, e junto, a uma pessoa que, como ainda hoje, conhecia tão pouco.
Não lembro se tive vontade de chorar, como acontece com muitos, acho que não. Somente aquele nó que transitava entre a boca do estômago e a garganta, dificultando qualquer resposta diminuídas a monosilábicos de sim e não. Os votos de bem vindo e de feliz natal me soavam como ofensas proferidas por desconhecidos e uma irritação crescia a cada minuto passado rumo a ceia. Calado, sentado no canto eu contorcia meu espírito para caber dentro do inadequado. Um telefonema foi permitido a minha mãe e, do engasgo ao soluço, as lágrimas, as primeira em meses, me fizeram sentir, mais uma vez, um incontrolável desejo de não existir. Por que a vida tinha me escolhida para ser aquele ser intolerante, obsessivo, compulsivo? Agora era tarde, pensei antes de desligar o telefone. A ceia farta, as orações e os fogos me fizeram esquecer por algumas horas o meu principal motivo de estar naquele lugar. Eu estava iniciando um tratamento contra dependência química.
A primeira semana foi de perigosos combates contra legiões de demônios saídos ardilosamente do meu inconsciente. Quase sucumbi. Turtrilhões de dúvidas, avalanches de incertezas, baldes de mágoas, sacolas de ressentimentos, os amores incompletos, os desejos irrealizáveis, tudo me pesava como uma carga mal arrumada sobre um corpo fragilizado pelo excesso de drogas. As de minha preferências o álcool, a cocaína e seus derivados. Mas, como tinha certeza de uma última chance eu me agarrei naquele salva vidas o qual chamamos de recuperação.
Seis meses de uma profunda viagem aos meus porões para uma faxina que, ainda hoje, teimo em continuar na esperança de ser a pessoa que preciso, quero e posso oferecer `a aqueles que ainda me tem algum apresso. Laborterapia para expulsar os resíduos químicos das drogas, terapia para avaliar os impactos e espiritualidade para não esquecer que não estava sozinho. Pela primeira vez em alguns anos eu me vi totalmente envolvido em uma pesquisa tão poderosa de minha alma, mente e o corpo. Alguns meses, doze passos, cento e oitenta terços, “GSs” (GS- grupo de sentimento – reunião para desabafos individuais) e centenas da oração da serenidade. Fui sobrevivendo até me dar conta de que já haviam passado quatro meses e eu tive a minha primeira saída terapêutica, e depois outra e por fim, no dia de São João, 24 de junho de 2010 eu rumei a aquela porteira que por vezes me pareceu prisão. Três palavras ecoavam na minha cabeça. Só por hoje.
Fiz, ontem, uma visita a comunidade terapêutica. Era uma outra festa de natal, outros internos, pois esta doença não dorme. Foi emocionante, tocante cada olhar a cada canto que eu conhecia do local. Me deu vontade de agradecer, mas não sei bem a quem. A Deus? Com certeza. A mim? Talvez. Aos meus pais? Sempre. Aos amigos? Também. Mas eu me dei conta que eu também devo agradecer ao sofrimento que me fez ver que a minha vida, mesmo ainda tão incompleta de virtudes, tem um sentido compreendido a cada momento, a cada hora, a cada dia em que o meu olhar busca sempre uma compaixão comedida, um sentimento tranquilo, uma alegria que se completa em outros. Valeu a pena ter amanhecido...É que ainda tenho muitas dúvidas e incompreensões, mas já sei dar alguns passos vivendo cada momento. Este é o meu novo momento de Natal. O Natal pra mim faz sentido.

Deus...conceda-me serenidade
para aceitar as coisas que eu não posso modificar
coragem para modificar as que eu posso
e sabedoria para reconhecer a diferença.



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