Mórbido
Depois de mais de uma hora esperando o ônibus, que só
passava lotado, resolvi encarar a multidão enlatada e me juntar a aquele
sacrifício. Na entrada um senhor meio cego pisa no meu pé e nem pede desculpas.
Eu peço. O cartão de passe livre que nem sempre é fácil resolve se calar em
seus códigos chipados e sou obrigado a tirar da carteira os últimos reais que
guardava para um lanche rápido que faria ao invés de um prato de feijão com
arroz e salada costumeiro. O dia já começava me dando pistas de que seria daqueles
em que só não temos ataques de fúrias por saber que existem policiais muito
mais violentos que qualquer surto. Melhor me espremer de algum jeito e, pelo
menos, ouvir um rock no aparelhinho de mp3 escondido no fundo da mochila e que
levo horas pra encontrar e, mesmo assim, a bateria acaba antes da primeira
música. Pelo menos a paisagem do lago e da esplanada vai me tirar a atenção,
mas as comemorações do aniversário da cidade faz aquelas paisagens ficarem
turvas e sem graça. Tomara que a rodoviário chegue logo, pois este baú não
parece que está indo pra lá. No aperto da saída o empurra me faz cambalear e
derrubar a mochila onde, bem guardado e protegido, está o meu tablet novinho
comprado em 24 prestações no cartão de crédito. Quebrou. Pensei logo dando uma
forcinha a mais para o mau agouro que parecia ter me acordado e me seguido
durante o inicio daquela manhã. Só um arranhão, mesmo com toda aquela proteção
de plástico bolhas. Um cafezinho, certamente, me fará esquecer estas mazelas de
cidade grande. E aquele cigarrinho depois, esquecendo claro da minha asma, para
tentar escurecer os sentimentos tanto quanto ao pulmão. Porra de isqueiro que
não funciona. Ela me chama pelo nome e
eu nem sabia que ela sabia o meu nome. Queria também acender o cigarro. Porra
de isqueiro que não funciona. Tento puxar uma conversa sobre estes pequenos
importados que nos deixam na mão e ela simplesmente me diz que não tem
problemas e vai embora. Mais na frente ela vira-se e me sorri, e me manda um
beijinho de ponta de dedos. Pra quê isqueiro? Minhas esperanças acenderam e eu
tenho a tímida sensação de que ganhei o dia. Mas ela vai embora sem mais e deixa
aquela pequena chama ardendo. É o combustível que preciso pra passar mais um
dia na solidão mórbida desta cidade.
Um comentário:
Ei Silvio, fiquei aflita, junto com vc. Suspirei uns "nossasenhoradocéu" algumas repetidas vezes. Mas que bom que vc também consegue visualizar sorriso e ponta de dedo. Afinal, a vida é feita de sutilezas também. Vc já leu o que Lispector escreveu sobre Brasília? Muito estranho... Muito bom te visitar aqui... pq vc não nos envia algo pro blog da Confrur? Fica aqui o convite. bjinhos
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