sábado, 28 de abril de 2012

Mórbido


Mórbido

Depois de mais de uma hora esperando o ônibus, que só passava lotado, resolvi encarar a multidão enlatada e me juntar a aquele sacrifício. Na entrada um senhor meio cego pisa no meu pé e nem pede desculpas. Eu peço. O cartão de passe livre que nem sempre é fácil resolve se calar em seus códigos chipados e sou obrigado a tirar da carteira os últimos reais que guardava para um lanche rápido que faria ao invés de um prato de feijão com arroz e salada costumeiro. O dia já começava me dando pistas de que seria daqueles em que só não temos ataques de fúrias por saber que existem policiais muito mais violentos que qualquer surto. Melhor me espremer de algum jeito e, pelo menos, ouvir um rock no aparelhinho de mp3 escondido no fundo da mochila e que levo horas pra encontrar e, mesmo assim, a bateria acaba antes da primeira música. Pelo menos a paisagem do lago e da esplanada vai me tirar a atenção, mas as comemorações do aniversário da cidade faz aquelas paisagens ficarem turvas e sem graça. Tomara que a rodoviário chegue logo, pois este baú não parece que está indo pra lá. No aperto da saída o empurra me faz cambalear e derrubar a mochila onde, bem guardado e protegido, está o meu tablet novinho comprado em 24 prestações no cartão de crédito. Quebrou. Pensei logo dando uma forcinha a mais para o mau agouro que parecia ter me acordado e me seguido durante o inicio daquela manhã. Só um arranhão, mesmo com toda aquela proteção de plástico bolhas. Um cafezinho, certamente, me fará esquecer estas mazelas de cidade grande. E aquele cigarrinho depois, esquecendo claro da minha asma, para tentar escurecer os sentimentos tanto quanto ao pulmão. Porra de isqueiro que não funciona.  Ela me chama pelo nome e eu nem sabia que ela sabia o meu nome. Queria também acender o cigarro. Porra de isqueiro que não funciona. Tento puxar uma conversa sobre estes pequenos importados que nos deixam na mão e ela simplesmente me diz que não tem problemas e vai embora. Mais na frente ela vira-se e me sorri, e me manda um beijinho de ponta de dedos. Pra quê isqueiro? Minhas esperanças acenderam e eu tenho a tímida sensação de que ganhei o dia. Mas ela vai embora sem mais e deixa aquela pequena chama ardendo. É o combustível que preciso pra passar mais um dia na solidão mórbida desta cidade.

Um comentário:

GiselleXL disse...

Ei Silvio, fiquei aflita, junto com vc. Suspirei uns "nossasenhoradocéu" algumas repetidas vezes. Mas que bom que vc também consegue visualizar sorriso e ponta de dedo. Afinal, a vida é feita de sutilezas também. Vc já leu o que Lispector escreveu sobre Brasília? Muito estranho... Muito bom te visitar aqui... pq vc não nos envia algo pro blog da Confrur? Fica aqui o convite. bjinhos