sábado, 9 de março de 2013

A Dama e o Vagabundo




A dama e o vagabundo - Silvio Margarido
in " PITILHOS E PITHULAS". 


     Conheci Mércia em um fim de noite da pesada, em um dos pontos que as meninas fazem programa na cidade. E - impressionante - foi ela quem me escolheu. Dentre tantas meninas que estavam ali para conseguir algum cliente, foi exatamente aquela morena com um sorriso curto e olhar triste, que se apresentou dizendo: “Eu quero ir com você!”. Ela deveria ter uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos (Bem vividos, diga-se de passagem). Seu programa era até barato, se tivesse drogas, ela fazia tudo por cinquenta reais. Tudo mesmo! E foi exatamente nas drogas que minha afinidade com Mércia ficou mais evidente.
      Na primeira vez que nos encontramos, não teve muita conversa, depois de fumar alguns cigarros, preparados de tabaco com pasta-base de cocaína, mais algumas cervejas nós fomos para aquela “trepada” que mais parecia uma obrigação do nosso contrato. Mas foi bom. Ela atendia prontamente a cada uma das minhas mais esdrúxulas solicitações e, o melhor, ainda acrescentava coisas de sua extensa experiência. Nada criativa, mas eficaz. Ela só não atendia ao meu desejo de beijá-la na boca.
De outra vez que a encontrei parecíamos velhos conhecidos. Ela foi logo entrando no táxi, antes que eu tivesse tempo de chamar outra garota qualquer. Como sempre, ia logo me perguntando: “E ai? Tem?”. Este “ingrediente” nunca poderia faltar nos nossos encontros. “Claro que tem!”, eu disse de pronto. Assim fui estabelecendo uma relação “estável” com aquela garota. Sempre que recorria a esses serviços era ela a quem eu procurava. Conversávamos muito. Na verdade, ela me fazia muitas perguntas. Ficava admirada com a quantidade de cartazes de cinema colados nas paredes do meu apartamento, com os livros socados na estante e espalhados pelos chão, pelas músicas que eu ouvia. Ela dizia que eu era um maluco diferente. Eu nunca entendi o que ela via de diferente em mim. Mas eu achava Mércia diferente. Bonita, apesar de maltratada, e inteligente. Me disse que era casada com um traficante que estava  preso. “Se ele descobre, ele mata a gente!”, tentava me assustar. Mas eu não tinha medo. O meu envolvimento com aquele mundo era tão profundo que qualquer coisa fazia parte do pacote. Eu passei a observar aquela mulher um pouco mais e fui desenvolvendo, confesso, uma afetividade diferente da que, normalmente, um homem tem por esse tipo de garota. Eu estava gostando dela. Quer dizer: Eu me apaixonei pela puta. O mais interessante é que eu não pegava mais a Mércia para simplesmente “trepar”, eu a pegava pra usar drogas e conversar. Às vezes ela até trazia uma amiga com quem eu acabava indo pra cama, enquanto ela ficava detonando as minhas trouxinhas de “melado” e de cocaína. Foi um bom tempo de uma grande e estranha amizade. Algumas noites ela aparecia na minha casa sem mesmo ser solicitada. Tinha dias que já trazia as drogas. Sempre um pouco mais tarde da madrugada, depois que os programas davam dinheiro suficiente pra ela ir encher a cara de entorpecentes na minha casa.
     O mais triste disso tudo, coisa que eu só percebi muito tempo depois é que ela me falava dos sonhos que tinha. “Queria sair daquela vida e casar com uma “pessoa boa”, como ela mesma dizia. Dizia que ainda queria estudar. Mas, todas elas dizem isso. Eu gostava daquela garota. Muito mais pela companhia do que mesmo pelo sexo, que já era feito de uma forma bem mecânica e somente para finalizar as noitadas de “pitilhos”. Eu a olhava desfilando pelo pequeno apartamento fazendo poses, caras e bocas como que realizando um dos seus desejos de adolescência. Mércia me disse certa vez que queria ser modelo quando era mais jovem. E ela teria sido uma bela manequim, mas será que teria se livrado das drogas e da prostituição? Talvez fosse em outro nível.
     Certa madrugada fui acordado com os gritos de Mércia no portão. Ela me chamava aos berros, desesperada. Levantei e corri até lá. Ela estava machucada. Olho roxo, nariz sangrando, chorava implorando pra entrar. Contou que foi espancada por um cara que, além de tudo, não pagou pelo programa. Entramos e ela foi tomar um banho. Eu estava numa rebordosa daquelas e não queria, de jeito nenhum, que ela aparecesse. Saiu do banheiro perguntando se eu tinha alguma “coisa”. Não tinha. Me pareceu que seu mundo caiu naquela hora. Me pediu dinheiro. Não tinha. Ela ficou muito irritada. Me xingou. Xingou aos gritos o cara que lhe bateu. Pedi que parasse pois ia acordar os vizinhos, que já não gostavam nada da movimentação de “malucos e piranhas” na minha casa. Ela ficou mais irritada ainda. Tive que mandá-la embora. Ela me disse que não podia sair por que o sujeito ainda poderia estar procurando por ela. Então revelou que se tratava do tal marido que havia saído da cadeia e descoberto que ela fazia programa. “Putaquiupariu!”, pensei, “e se esse filho da puta resolve vir aqui?”. Expulsei Mércia de casa. Ela saiu chorando, berrando, mas foi.
     Depois desse dia ela desapareceu. Nunca mais foi na minha casa. Quando ainda fui procurá-la aonde fazia ponto, as meninas disseram que ela nunca mais tinha aparecido por ali. Cheguei a pensar que o marido a tinha matado, mas nenhuma noticia nos jornais.
     Bem, depois de um tempo, eu é que tive que sair fora daquela vida. Fui para uma clínica de recuperação e não voltei mais a frequentar aqueles lugares. Certo dia, alguns anos depois, passando de táxi pelo Papôco, eu vi Mércia na calçada. Magra, “detonada”, suja, bêbada. Quase pedi para o taxista parar. Queria falar alguma coisa pra ela. Saber dela. Mas tive vergonha e deixei o carro seguir. Olhei para trás e ainda vi aquela garota que afastou a solidão de algumas das minhas noites de “pithulas e pitilhos”, ali sozinha, talvez a procura de um programa, destruída pelas drogas e eu não tive coragem de fazer nada. Talvez ela estivesse doente, precisando de alguma ajuda, mas a vergonha, que eu nunca tive de nada que fazia, naquele momento foi a barreira para qualquer gesto de solidariedade. Eu fui embora.
     Eu tinha resolvido esquecer essa história, porém, ontem, ouvindo um programa de rádio, escutei o locutor oferecer uma canção para uma Mércia e sua filhinha de dois anos. Lembrei-me daquela menina e aí me deu um aperto no peito e uma esperança, de que aquela fosse a “minha” Mércia. Que uma “pessoa boa” tivesse, enfim, aparecido e salvado aquela garota que, na ultima vez que vi, pareceu-me no fim.
     Nunca mais ouvi nada.

7 comentários:

Unknown disse...

Incrível texto com o relato de um momento de sua vida. Aguardo muito ansioso os novos textos !!!

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...

isso não é um momento da minha vida

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Olá !
Fui eu quem fiz o comentário acima !
Admiro ainda mais o texto, pois a forma em que foi escrito parece um relato pessoal ! Parabéns !!!

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...

São vários momentos compilados em uma crônica que mistura ficção e experiências.

Sílvio Francisco Lima Margarido disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sílvio Francisco Lima Margarido disse...

No fim é tudo real