A dama e o vagabundo - Silvio Margarido
in " PITILHOS E PITHULAS".
Conheci Mércia em um
fim de noite da pesada, em um dos pontos que as meninas fazem
programa na cidade. E - impressionante - foi ela quem me escolheu.
Dentre tantas meninas que estavam ali para conseguir algum cliente,
foi exatamente aquela morena com um sorriso curto e olhar triste, que
se apresentou dizendo: “Eu quero ir com você!”. Ela deveria ter
uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos (Bem vividos, diga-se de
passagem). Seu programa era até barato, se tivesse drogas, ela fazia
tudo por cinquenta reais. Tudo mesmo! E foi exatamente nas drogas que
minha afinidade com Mércia ficou mais evidente.
Na primeira vez que nos
encontramos, não teve muita conversa, depois de fumar alguns
cigarros, preparados de tabaco com pasta-base de cocaína, mais
algumas cervejas nós fomos para aquela “trepada” que mais
parecia uma obrigação do nosso contrato. Mas foi bom. Ela atendia
prontamente a cada uma das minhas mais esdrúxulas solicitações e,
o melhor, ainda acrescentava coisas de sua extensa experiência. Nada
criativa, mas eficaz. Ela só não atendia ao meu desejo de beijá-la
na boca.
De outra vez que a
encontrei parecíamos velhos conhecidos. Ela foi logo entrando no
táxi, antes que eu tivesse tempo de chamar outra garota qualquer.
Como sempre, ia logo me perguntando: “E ai? Tem?”. Este
“ingrediente” nunca poderia faltar nos nossos encontros. “Claro
que tem!”, eu disse de pronto. Assim fui estabelecendo uma relação
“estável” com aquela garota. Sempre que recorria a esses
serviços era ela a quem eu procurava. Conversávamos muito. Na
verdade, ela me fazia muitas perguntas. Ficava admirada com a
quantidade de cartazes de cinema colados nas paredes do meu
apartamento, com os livros socados na estante e espalhados pelos
chão, pelas músicas que eu ouvia. Ela dizia que eu era um maluco
diferente. Eu nunca entendi o que ela via de diferente em mim. Mas eu
achava Mércia diferente. Bonita, apesar de maltratada, e
inteligente. Me disse que era casada com um traficante que estava preso. “Se ele descobre, ele mata a gente!”, tentava me assustar.
Mas eu não tinha medo. O meu envolvimento com aquele mundo era tão
profundo que qualquer coisa fazia parte do pacote. Eu passei a
observar aquela mulher um pouco mais e fui desenvolvendo, confesso,
uma afetividade diferente da que, normalmente, um homem tem por esse
tipo de garota. Eu estava gostando dela. Quer dizer: Eu me apaixonei
pela puta. O mais interessante é que eu não pegava mais a Mércia
para simplesmente “trepar”, eu a pegava pra usar drogas e
conversar. Às vezes ela até trazia uma amiga com quem eu acabava
indo pra cama, enquanto ela ficava detonando as minhas trouxinhas de
“melado” e de cocaína. Foi um bom tempo de uma grande e estranha
amizade. Algumas noites ela aparecia na minha casa sem mesmo ser
solicitada. Tinha dias que já trazia as drogas. Sempre um pouco mais
tarde da madrugada, depois que os programas davam dinheiro suficiente
pra ela ir encher a cara de entorpecentes na minha casa.
O mais triste disso
tudo, coisa que eu só percebi muito tempo depois é que ela me
falava dos sonhos que tinha. “Queria sair daquela vida e casar com
uma “pessoa boa”, como ela mesma dizia. Dizia que ainda queria
estudar. Mas, todas elas dizem isso. Eu gostava daquela garota. Muito
mais pela companhia do que mesmo pelo sexo, que já era feito de uma
forma bem mecânica e somente para finalizar as noitadas de
“pitilhos”. Eu a olhava desfilando pelo pequeno apartamento
fazendo poses, caras e bocas como que realizando um dos seus desejos
de adolescência. Mércia me disse certa vez que queria ser modelo
quando era mais jovem. E ela teria sido uma bela manequim, mas será
que teria se livrado das drogas e da prostituição? Talvez fosse em
outro nível.
Certa madrugada fui
acordado com os gritos de Mércia no portão. Ela me chamava aos
berros, desesperada. Levantei e corri até lá. Ela estava machucada.
Olho roxo, nariz sangrando, chorava implorando pra entrar. Contou que
foi espancada por um cara que, além de tudo, não pagou pelo
programa. Entramos e ela foi tomar um banho. Eu estava numa rebordosa
daquelas e não queria, de jeito nenhum, que ela aparecesse. Saiu do
banheiro perguntando se eu tinha alguma “coisa”. Não tinha. Me
pareceu que seu mundo caiu naquela hora. Me pediu dinheiro. Não
tinha. Ela ficou muito irritada. Me xingou. Xingou aos gritos o cara
que lhe bateu. Pedi que parasse pois ia acordar os vizinhos, que já
não gostavam nada da movimentação de “malucos e piranhas” na
minha casa. Ela ficou mais irritada ainda. Tive que mandá-la embora.
Ela me disse que não podia sair por que o sujeito ainda poderia
estar procurando por ela. Então revelou que se tratava do tal marido
que havia saído da cadeia e descoberto que ela fazia programa.
“Putaquiupariu!”, pensei, “e se esse filho da puta resolve vir
aqui?”. Expulsei Mércia de casa. Ela saiu chorando, berrando, mas
foi.
Depois desse dia ela
desapareceu. Nunca mais foi na minha casa. Quando ainda fui
procurá-la aonde fazia ponto, as meninas disseram que ela nunca mais
tinha aparecido por ali. Cheguei a pensar que o marido a tinha
matado, mas nenhuma noticia nos jornais.
Bem, depois de um tempo,
eu é que tive que sair fora daquela vida. Fui para uma clínica de
recuperação e não voltei mais a frequentar aqueles lugares. Certo
dia, alguns anos depois, passando de táxi pelo Papôco, eu vi Mércia
na calçada. Magra, “detonada”, suja, bêbada. Quase pedi para o
taxista parar. Queria falar alguma coisa pra ela. Saber dela. Mas
tive vergonha e deixei o carro seguir. Olhei para trás e ainda vi
aquela garota que afastou a solidão de algumas das minhas noites de
“pithulas e pitilhos”, ali sozinha, talvez a procura de um
programa, destruída pelas drogas e eu não tive coragem de fazer
nada. Talvez ela estivesse doente, precisando de alguma ajuda, mas a
vergonha, que eu nunca tive de nada que fazia, naquele momento foi a
barreira para qualquer gesto de solidariedade. Eu fui embora.
Eu
tinha resolvido esquecer essa história, porém, ontem, ouvindo um
programa de rádio, escutei o locutor oferecer uma canção para uma
Mércia e sua filhinha de dois anos. Lembrei-me daquela menina e aí
me deu um aperto no peito e uma esperança, de que aquela fosse a
“minha” Mércia. Que uma “pessoa boa” tivesse, enfim,
aparecido e salvado aquela garota que, na ultima vez que vi,
pareceu-me no fim.
Nunca mais ouvi nada.
7 comentários:
Incrível texto com o relato de um momento de sua vida. Aguardo muito ansioso os novos textos !!!
isso não é um momento da minha vida
Olá !
Fui eu quem fiz o comentário acima !
Admiro ainda mais o texto, pois a forma em que foi escrito parece um relato pessoal ! Parabéns !!!
São vários momentos compilados em uma crônica que mistura ficção e experiências.
No fim é tudo real
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