"Começar de novo - Ivan Lins
Começar
de novo e contar comigo
Vai
valer a pena ter amanhecido
Ter
me rebelado, ter me debatido
Ter
me machucado, ter sobrevivido
Ter
virado a mesa, ter me conhecido
Ter
virado o barco, ter me socorrido
Começar
de novo e só contar comigo
Vai
valer a pena ter amanhecido
Sem
as tuas garras sempre tão seguras
Sem
o teu fantasma, sem tua moldura
Sem
tuas escoras, sem o teu domínio
Sem
tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar
de novo e só contar comigo
Vai
valer a pena já ter te esquecido
Começar
de novo..."
Silvio Margarido-23/12/2012
A viagem de carro da rodoviária até a chácara foi feita em silêncio. O medo e a dor
tomavam de conta de cada neurônio doente e cada extensão nervosa
descarregava em suor as mágoas de uma existência desmedida que
tinha, até aquela hora, decidido levar. Entrei por aquele portão de
madeira calado e fui recebido pela costumeira revista aos novos
residentes. Minha cabeça, além de carregar excessos químicos,
estava vazia de qualquer pensamento de esperança. Começou naquele
fim de tarde do dia 24 de dezembro de 2009 a minha jornada contra, e
junto, a uma pessoa que, como ainda hoje, conhecia tão pouco.
Não lembro se tive
vontade de chorar, como acontece com muitos, acho que não. Somente
aquele nó que transitava entre a boca do estômago e a garganta,
dificultando qualquer resposta diminuídas a monosilábicos de sim e
não. Os votos de bem vindo e de feliz natal me soavam como ofensas
proferidas por desconhecidos e uma irritação crescia a cada minuto
passado rumo a ceia. Calado, sentado no canto eu contorcia meu
espírito para caber dentro do inadequado. Um telefonema foi
permitido a minha mãe e, do engasgo ao soluço, as lágrimas, as
primeira em meses, me fizeram sentir, mais uma vez, um incontrolável
desejo de não existir. Por que a vida tinha me escolhida para ser
aquele ser intolerante, obsessivo, compulsivo? Agora era tarde,
pensei antes de desligar o telefone. A ceia farta, as orações e os
fogos me fizeram esquecer por algumas horas o meu principal motivo de
estar naquele lugar. Eu estava iniciando um tratamento contra
dependência química.
A primeira semana foi de
perigosos combates contra legiões de demônios saídos ardilosamente
do meu inconsciente. Quase sucumbi. Turtrilhões de dúvidas,
avalanches de incertezas, baldes de mágoas, sacolas de
ressentimentos, os amores incompletos, os desejos irrealizáveis,
tudo me pesava como uma carga mal arrumada sobre um corpo fragilizado
pelo excesso de drogas. As de minha preferências o álcool, a
cocaína e seus derivados. Mas, como tinha certeza de uma última
chance eu me agarrei naquele salva vidas o qual chamamos de
recuperação.
Seis meses de uma
profunda viagem aos meus porões para uma faxina que, ainda hoje,
teimo em continuar na esperança de ser a pessoa que preciso, quero e
posso oferecer `a aqueles que ainda me tem algum apresso.
Laborterapia para expulsar os resíduos químicos das drogas, terapia
para avaliar os impactos e espiritualidade para não esquecer que não
estava sozinho. Pela primeira vez em alguns anos eu me vi totalmente
envolvido em uma pesquisa tão poderosa de minha alma, mente e o
corpo. Alguns meses, doze passos, cento e oitenta terços, “GSs” (GS- grupo de sentimento – reunião para desabafos
individuais) e centenas da oração da serenidade. Fui sobrevivendo
até me dar conta de que já haviam passado quatro meses e eu tive a
minha primeira saída terapêutica, e depois outra e por fim, no dia
de São João, 24 de junho de 2010 eu rumei a aquela porteira que por
vezes me pareceu prisão. Três palavras ecoavam na minha cabeça. Só
por hoje.
Fiz, ontem, uma visita a
comunidade terapêutica. Era uma outra festa de natal, outros
internos, pois esta doença não dorme. Foi emocionante, tocante cada
olhar a cada canto que eu conhecia do local. Me deu vontade de
agradecer, mas não sei bem a quem. A Deus? Com certeza. A mim?
Talvez. Aos meus pais? Sempre. Aos amigos? Também. Mas eu me dei
conta que eu também devo agradecer ao sofrimento que me fez ver que
a minha vida, mesmo ainda tão incompleta de virtudes, tem um sentido
compreendido a cada momento, a cada hora, a cada dia em que o meu
olhar busca sempre uma compaixão comedida, um sentimento tranquilo,
uma alegria que se completa em outros. Valeu a pena ter
amanhecido...É que ainda tenho muitas dúvidas e incompreensões,
mas já sei dar alguns passos vivendo cada momento. Este é o meu
novo momento de Natal. O Natal pra mim faz sentido.
Deus...conceda-me
serenidade
para aceitar as coisas
que eu não posso modificar
coragem para modificar
as que eu posso
e sabedoria para
reconhecer a diferença.
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